O voo apaixonado de William Gavião pelo Teatro

Actor, encenador, professor, o brasileiro William Gavião é uma das vozes mais respeitadas no meio teatral português. Vivendo em Matosinhos, elege esta cidade e o Porto como lugares de eleição, já entranhou o sotaque português, casou com uma portuguesa, e sente que descobriu no nosso país uma velha paixão: a arte de ensinar o amor pelo Teatro.

P – William:  pode fazer uma breve apresentação do seu trabalho profissional?
WG - Me formei como actor no Brasil, na escola de teatro Martins Pena, Rio de Janeiro em 1986/7, a escola muito conceituada e a mais antiga da América Latina. Tive uma carreira consolidada como profissional no meu país, onde integrei diversos espectáculos e projectos teatrais.
Vim ao FITEI (Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica) no Porto, em 1986, com um espetáculo premiadíssimo no Brasil, foi quando conheci Portugal e minha esposa. Retornei ao Brasil, onde ainda participei como actor em outros espetáculos, mas o Brasil vivia um momento muito difícil economicamente, onde a arte e a cultura, como de costume nestes momentos de crise, sofria brutalmente.
O país vivia uma de suas maiores crises políticas e sociais, qua agravava ainda mais qualquer vislumbre de futuro. Tinha ambições e planos maiores de poder criar outras oportunidades de vida  e,  se para isso, fosse necessário mudar de país e recomeçar tudo de novo, estava disposto a fazê-lo, tinha construído algumas pontes e amizades em Portugal, o caminho estava feito, as oportunidades surgiram, e não pensei duas vezes, vim para Portugal de armas e bagagens.
Sem medo de me reinventar, fui construindo aqui, do zero a minha carreira no teatro. Dei continuidade ao meu trabalho como actor, e em Portugal também me descobri como encenador e professor de teatro. Fundei a minha própria companhias de Teatro de pesquisa – Teatro Reactor de Matosinhos, onde dei continuidade no meu trabalho e pude, de forma autónoma,  ,construir meus espectáculos, projetos e parcerias com o Brasil, estreitando sempre os laços que nos unem e alimentam culturalmente estas duas pátrias, e lá se vão 22 anos de Portugal…

P – Vive desde 1992 em Portugal. Como foi a adaptação ao nosso país?
WG- Não posso dizer que tive uma adaptação difícil, pois a  minha mulher é Portuguesa, tive desde sempre toda uma estrutura familiar, da parte dela, que me apoiou e acolheu. Tive também a sorte de conhecer pessoas e artistas interessantes do meio artístico, e sobretudo construir amizades sólidas.
Pude construir e conquistar meu espaço pouco a pouco,  e assim continuar a exercer o teatro e dar corpo aos meus projetos. As saudades do Brasil sempre foram as mais saudáveis, as minhas escolhas de vida e mudança de país, nunca trouxeram me arrependimentos.
Pouco a pouco,  e com o passar dos anos e dos trabalhos, também criei raízes aqui, raízes que hoje se confundem, se entrelaçam com as de minha origem, raízes estas que me deram outra pátria para além da minha. Tornei- me hoje um homem duplamente patriado…e sei bem o profundo sentimento da frase de Caetano Veloso, que diz, “Minha Pátria é minha Língua..”

– Que diferenças e semelhanças encontrou entre o Teatro português e brasileiro ?
WG - Talvez a maior diferença que tenha sentido,  é a duração de carreira dos espectáculos :  no Brasil podemos estar em cena até mais de 1 ano com um espectáculo :  quando este espectáculo  consegue algum reconhecimento de público  ou no mínimo 3 a 4 meses de temporada.
Em Portugal,  a carreira dos espectáculos é  mais curta ,  raramente chega a mais de 1 mês num mesmo espaço / teatro. Mas a cultura e os mecanismos teatrais em Portugal são diferentes, sempre houve subsídios e apoios para o teatro e suas estruturas, independente da justiça e equidade dos governos e organismos que os gerem.
Em  matéria da qualidade e do poder artístico e intelectual, não vejo diferenças, pelo contrário, o teatro português e alguns projetos e companhias em particular um pouco por todo país, fazem um trabalho teatral de extrema qualidade e com grandes actores. Destaco também as novas companhias, que atualmente, desenvolvem um teatro de grande preocupação do diálogo com a modernidade e com grande responsabilidade e envolvimento com a realidade que estamos inseridos.
Um teatro em sintonia com o seu tempo.

P - O que representam para o William, as cidades do Porto e de Matosinhos ?
WG - São ambas o berço que me acolheu. Duas cidades bem diferentes e igualmente belas, com encantos e recantos únicos. Tanto no Porto, como em Matosinhos, sentimos o peso da suas histórias e da sua gente, do poder avassalador de suas belezas naturais e patrimoniais, as ruelas, o Rio D’Ouro, o sol o mar de Matosinhos. A luz…a penumbra…as texturas…as cores…o cheiro…de tão diferentes cidades…inseridas e parte, ambas, do mesmo concelho, concelho do Porto !
Hoje Matosinhos tornou-se mais a minha cidade, pois nela resido e talvez seja bem suspeito para falar.

P – Quais são os seus lugares de eleição nestas cidades ?
WG- No Porto,  sem dúvida é a Ribeira com vista para rio D’Ouro. Em Matosinhos, gosto de Leça da Palmeira, da luz, as cores, sua costa, suas praias e o Museu da Quinta de Santiago.
P – Encontrou muitas diferenças entre o sotaque brasileiro e português ?
WG -Claro que sim…mas nada demais…que após alguns minutos a ouvir,  não habitue o ouvido e tudo fique natural, sem problema maior. O sotaque português e sua sonoridade, digamos ser um pouco mais dura, em comparação com o sotaque brasileiro, que é mais melodioso e musical.
Mas hoje, meu sotaque brasileiro esta mais aportuguesado, natural, depois de tantos anos. Um amigo meu, dramaturgo paulista, disse-me há pouco tempo, quando cá esteve, que não falo totalmente, nem com sotaque brasileiro e nem com sotaque português, falo com um terceiro sotaque, só não sei como lhe chamar.

P – Há alguma expressão ou palavras portuguesa que o tenha surpreendido?
WG - Prego em prato e a diferença no tratamento entre tu e você.
P – O William é ator e professor. Pode falar-nos um pouco mais da sua actividade docente  ?
WG - Ora bem, aí  está  uma competência que descobri em Portugal, uma facilidade de transmitir “conhecimento”, uma capacidade que estava adormecida, acredito que algo nato, que  já existia, nesta comunicação, neste desejo e felicidade de poder partilhar minha experiência de vida, que nunca esta separada de minha condição de actor.
Algo que fui potencializando ao longo dos anos. Ensinar é um ato de aprendizagem e generosidade infinda. O facto de que tudo aquilo que transmito, tenha vivido na pele, torna o ato da partilha e da troca de ensinamentos, uma experiência viva e única.
Um gesto de amor à  arte  e ao teatro que tenho vivido,  intensamente,  como professor. Creio que tornei me um actor melhor, um homem ainda melhor, aprendi a ver me melhor, vendo os outos.

P – Como olha para o ensino artístico em Portugal ?
WG - O ensino artístico em Portugal vem cada vez mais crescendo e criando raízes sólidas. Noto ao longo destes 22 anos que aqui estou, a enorme procura pelo aprendizado, nas mais diversas faixas etárias, pela experiência teatral, seja nas escolas de teatro, seja nas oficinas e Workshops que hoje alimentam esta enorme procura.
Um sinal muito positivo para o universo do teatro, um sinal de que hoje o teatro chega com mais força a muito mais pessoas, sejam elas amadoras, amantes, ou apenas curiosas pelo teatro. Hoje grande parte dos que procuram o teatro, sabem perfeitamente a complexidade, as inúmeras competências e feitos que arte pode surtir e fomentar no individuo. Potencializando o humano, numa libertação e descoberta de si mesmo, ante a vida e o mundo que o rodeia. O teatro é uma arma poderosa ante o pessimismo,  e os limites que a realidade e a  vida, muitas vezes,  nos impõem,  aprisionando-nos .
A arte e o teatro nos tornam mais fortes, críticos e atuantes ante a vida e nós mesmos.

P – E no Brasil ?
WG - O Brasil já tem uma grande cultura na procura do teatro, na arte da representação, muito à  custa da grande indústria do entretenimento e do áudio visual. Novas escolas de teatro surgiram e cresceram nas últimas décadas.
O teatro Brasileiro tem  um grande legado, no início do século, com as grandes companhias de teatro e actores que fizeram história no teatro, com o teatro de resistência política, na época da ditadura, e de todo processo que foi travado. O Teatro pode se estabelecer, crescer, criando bases sólidas e alimentando esta grande indústria da cultura e da arte,  um pouco por todo país.
Para não dizer da grande cultura dramatúrgica e dos novos autores,  que escrevem para teatro, novelas, cinema e outros formatos, uma verdadeira e valorosa safra de grandes autores e sobretudo grandes dramaturgos, a escreverem para teatro.

P – Criou o Projecto “ Salvé a língua de Camões. Em que consiste este projecto ?
WG - É um projecto da minha companhia Teatro Reactor Matosinhos que já vai no seu 10º ano em parceria com a Câmara de Matosinhos e o Museu da Quinta de Santiago. Este projeto acontece durante todo o ano, sempre à última quinta-feira do mês, no Museu.
É um projecto lusófono, que visa única e exclusivamente divulgar os novos autores e dramaturgos, poucos conhecidos entre nós, que escrevem em Língua Portuguesa, oriundos dos países lusófonos. Através de leituras dramatizadas dos textos teatrais destes autores,  contribuímos  para uma nova visão do teatro e da dramaturgia contemporânea de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau, Portugal e Brasil.
Um projeto que criou parcerias com estes diversos países, que se estendem até  hoje, para além da escrita,  e que tem estimulado  um intercâmbio real em projetos e iniciativas culturais de grande valia para o fortalecimento da língua portuguesa e do teatro.
Deste projecto,  resultou em 2009, a  realização do 1º Festival Lusófono de Teatro Intimista, que tive a felicidade de conceber e realizar com o apoio da Câmara de Matosinhos, onde pudemos receber em Matosinhos companhias de teatro vindas destes países, no então recém aberto teatro Constantino Nery – Matosinhos.
Também  nos proporcionou apresentarmos   os nossos espectáculos no Brasil e em Cabo Verde. Este ano de 2014,  entramos no 11º ano do projeto, com inúmeras surpresas e parcerias…e a  aguardar pelas boas novas.

P – Quais são projectos em que está a trabalhar
WG - Neste momento, trabalho para a 11ª edição do Salvé a Língua de Camões, que começa em fevereiro de 2015, como disse anteriormente, com muitas novidades, colaborações e parcerias, para além da Câmara de Matosinhos e o Museu da Quinta de Santiago, os  nossos parceiros de costume.
Preparo um projeto de um novo espetáculo teatral adulto e para infância, e também acolheremos outros projetos vindos do Brasil. Como professor de teatro, virão novas oficinas de teatro, na ESAG (Escola Secundária Augusto Gomes), onde leciono a 4 anos, a continuação do meu trabalho de 9 anos a dar teatro para as crianças, nas escolas do ensino básico do concelho de Matosinhos, nas actividades de Enriquecimento Curricular.
Mais outros projectos estão a ser cozinhados nos melhores temperos…eu…estarei sempre em movimento ininterrupto…sempre inquieto….assim vive e voa este Gavião.

P – O que representa o Teatro para o William ?
WG - O teatro é o que me move, o que torna minha existência possível e útil. O teatro para mim é como uma missão, de servir, comungar e partilhar com meus semelhantes, de comunicar e dialogar com meu tempo. O teatro reconstitui, dota o Homem – na afirmação total de seu poder de comunicação, expressão, sociabilização, crítica e consolidação de sua identidade cultural, política e social.
O teatro é uma experiência divina, que leva mais do que uma vida inteira, para quiçá podermos alcança-lo, nas suas mais profundas entranhas. Precisaríamos voltar a nascer, recriarmo-nos, reinventarmos -nos para viver totalmente o teatro.
Isso tentámos  fazer, a cada noite, a cada momento que nos entregámos a esta arte.
Para resumir tudo isso, lembro - me de como os Gregos se saudavam uns aos outros antes de entrar em cena, naqueles anfiteatros: cada noite que entravam naquela arena e enfrentavam aqueles milhares de pessoas e imperadores na plateia, diziam simplesmente; “CONHEÇE-TE A TI PRÓPRIO!”. É exatamente isso que venho praticando a 50 anos….
 
Rui Marques

  www.facebook.com/sotaques – O Palco da sua Cultura