O
rosto apanha em contra-luz a objectiva do fotógrafo, e magneticamente ilumina a câmara. Poucos
escritores exercem sobre nós uma fascinação icónica como Clarice Lispector – um enleio que começa
naquela face esfíngica, que exprime tudo na exacta medida em que tudo esconde,
e que abocanha a máquina fotográfica com a ferocidade com que controlava as
suas personagens, e ninguém exercia esse poder de vida e de morte, demiúrgico,
tirânico e belo no interior dos seus Romances
como ela.
Dezembro
é o Mês de Clarice Lispector: ela nasceu em
Chechelnyk, Ucrânia, a 10 de dezembro de 1920 e faleceu no Rio de
Janeiro, 9 de dezembro de 1977. Mas como todos os grandes escritores, Clarice
tinha o dom da reencarnação, de reinventar-se a cada fase da vida.
Nascida
como Haia Pinkhasovna Lispector, numa família judaica, os pais levaram-na para
o Brasil para fugir das perseguições da Guerra Civil russa. A família muda-se
para Maceió e, mais tarde, para o Recife: todos decidem mudar de nome, começar
de novo, e é aqui que Clarice estuda,
aprende línguas e começa a escrever.
A
morte da mãe perturba-a, e a mudança com
o pai para o Rio de Janeiro, trazem a
jovem Clarice à capital brasileira para estudar Direito, Curso pelo qual nunca
sentiu grande predilecção. Em vez de seguir as vias jurídicas, lança-se com uma
precocidade invulgar nos caminhos da ficção – publica o seu primeiro conto
"Triunfo" na Revista Pan, de propriedade do editor José Scortecci.
Os
seus textos chamam a atenção: é
convidada para trabalhar na Agência nacional, responsável por distribuir
notícias aos jornais e emissoras de rádio da época, e ligada ao Departamento de Imprensa e
Propaganda do Estado Novo de Getúlio Vargas. Entretanto casa-se, em 1934, com o
colega de Direito Maury Gurgel Valente, diplomata de carreira e acompanha-o
como esposa do embaixador em destinos como a Suiça, a Inglaterra, Itália ou
Estados-Unidos.
Tem
dois filhos dessa relação mas a distância do Brasil, que ela não suportava, precipita o divórcio em 1959. Regressa ao Rio,
aos seus livros e às suas colaborações com os jornais. Em Setembro de 1966
provoca, durante o sono, um incêndio por ter deixado um cigarro acesso, a casa
é destruída, Clarice fica ferida e quase tem de amputar uma mão.
Morre uma década mais tarde, a 9 de Dezembro de
1977, ironicamente um dia antes do cumprir o seu 57º aniversário, com um Cancro de ovário
inoperável. Na manhã da sua morte, ainda ditava frases à sua amiga, Olga
Borelli, talvez a pensar na próxima obra.
Esta
é a História Oficial mas não é a História completa: faltam os romances de
Clarice. Obras como “Perto do Coração Selvagem” – escrito quando tinha apenas
21 anos –“ A Paixão segundo G.H”, “O Lustre”, “A Cidade Sitiada”, “A Maça no Escuro”, “ A
Legião estrangeira” ou “ A Hora da Estrela”.
Falta
essa escritora enorme, divina, essa profeta da palavra que parecia seguir os
ensinamentos do judaísmo e da Bíblia: nos versículos do Evangelho de João lê-se “e no princípio era o Verbo”. E o Verbo de Clarice tinha um
efeito devastador, criava universos onde o leitor se perdia e encontrava, fazia
uma viagem profunda ao íntimo do ser,
onde nenhuma palavra é gasta inutilmente, mas também onde nos vemos completamente,
como numa sala de espelhos, no interior
da qual não existe saída possível.
Entrar
numa obra de Clarice Lispector é como descer a um Labirinto. Só podemos sair
dele, seguindo-a como quem persegue uma
Ariadne que tece a Linguagem, que nos
salvará do cruel Minotauro. Um Labirinto que somos nós próprios, as nossas
insuficiências mais mesquinhas, a nossa Humanidade sem máscaras.
Batam
à porta de um Romance de Clarice Lispector. Não tenham medo. Vai doer, vai ser
revelador, mas será um enorme prazer chegar à última página.
www.sotaques.pt – A Revista da sua Cultura
R.
Marques
#sotaques
#Brasil
#Portugal
#Literatura