Almada Negreiros, um Leonardo da Vinci português

Nenhum artista nacional, no século XX, fez tanto e em tantas áreas como Almada Negreiros. Pintor, escritor, ilustrador, cenógrafo, não houve praticamente arte onde não deixasse a sua marca indelével.
Amigo de Fernando Pessoa, ultrapassou-o na heteronímia das artes, na capacidade de se desdobrar em múltiplos talentos, sempre com a mesma voracidade criativa. Curiosamente, Almada e Fernando Pessoa morreram na mesma cama , no Hospital São Francisco dos franceses, um sinal do destino destes dois geniais amigos que se tratavam por tu.

Quando José Sobral de Almada Negreiros nasceu, parafraseando-o, já se tinham inventado todas as palavras que haveriam de salvar o mundo, só faltava salvar o mundo. Corria o ano de 1893, na Trindade, em São Tomé e Príncipe, num fim de século XIX que anunciava uma nova era,  em que o futuro seria uma afirmação plena das potencialidades do homem.

O artista, neste contexto, era o profeta da mudança. E Almada, desde jovem, sentiu esse chamamento profundo da arte.

Regressado a Portugal com a família, Almada passou pelo Colégio de Jesuítas de Campolide e pelo Liceu de Coimbra,  antes de ingressar na Escola Internacional de Lisboa. Esta Instituição foi decisiva na sua formação artística: servindo-lhe  como oficina,  foi lá que desenhou o primeiro desenho  “n’A Sátira” e, em 1912, redigiu integralmente o jornal Manuscrito A Paródia, que expôs no I Salão dos Humoristas portugueses.

Em 1913,   realiza  a sua primeira exposição internacional, na qual apresenta cerca de 90 desenhos da Escola Internacional. A fazer a cobertura da exposição está Fernando Pessoa, que escreve para a revista “Águia” uma crítica – e desse primeiro contacto entre estes dois génios da cultura nacional nascerá uma amizade inquebrantável, e um célebre quadro que Almada pinta de Pessoa.
Almada continua o seu percurso como ilustrador – colabora em várias publicações e, em 1914, torna-se director artístico do semanário “Papagaio real”. Mas a sua criatividade não se fica pelo desenho e a ilustração – em 1917, escreve a novela “A engomadeira”, com características eminentemente surrealistas.

Integra com Pessoa, Mário de Sá Carneiro e Amadeo de Sousa Cardoso, a primeira edição da revista Orpheu, que é objecto de uma crítica mordaz de Júlio Dantas, que acusa os autores de serem pessoas sem juízo. Almada terá a sua vingança intelectual com o famoso manifesto anti-Dantas, em que demolirá os argumentos deste escritor que era uma espécie de patriarca das letras portuguesas da época.
Outras artes movem o seu insaciável génio. Em 1915 realiza o bailado “ O sonho da rosa”.
A 21 de Outubro desse ano, Almada desfere o golpe contra o conservadorismo nacional e a figura de Júlio Dantas.

O “ Manifesto anti-Dantas e por extenso” é uma afirmação da geração moderna aglutinada à volta da revista Orpheu contra o Portugal imóvel, separado da Europa. Júlio Dantas, escritor conceituado, médico, jornalista e académico, era a cabeça visível do velho regime das letras e da cultura nacional.
Sublime manifestação de ironia, o texto original é um dos tesouros da Literatura portuguesa. Tanto impacto causou, aquém e além fronteiras, que Almada se correspondeu, na altura com Sonia Delanunay, que estava refugiada em Portugal com o marido, e esta acabou por conseguir a sua  publicação nos meios artísticos europeus com o título “ Primeira Descoberta de Portugal”.

Fascinado pelo futurismo italiano,  Almada surge, em 1917, vestido de operário, e dá uma conferência “ Ultimatum futurista às gerações portuguesas do século XX”. Paralelamente, escreve a novela “ K4 O quadrado azul”, inspirada  no bailado.

Em 1921,  começa a colaborar com António Ferro,  máximo  responsável da propaganda nacional do regime de Salazar mas, igualmente, um protector das artes e dos artistas. Este apresenta a sua  conferência   “ A invenção do corpo” como “ o imaginário na terra de cegos”, e convida-o a desenhar para a ilustração portuguesa.

Desenhará a capa do livro de António Ferro “ A arte de bem morrer”, continuando a produzir ilustrações para revistas, cartazes para empresas e publicando peças como “ Pierrot e Arlequim” ( 1924), romances como “ Nome de guerra” ( 1925) e ensaios como “ A questão dos painéis: a história de um acaso de uma importante descoberta do seu autor” em 1926.

Entre 1927 e 1932, vive em Espanha, persistindo na sua actividade artístico e merecendo os mais rasgados elogios da crítica espanhola. Casa em 1934 com a também pintora Sarah Afonso, é o autor do selo para a emissão comemorativa da 1ª Exposição colonial, um cartaz para o álbum “Portugal 1934 e ilustrações para o programa das festas de Lisboa. Inicia também os estudos para a colocação dos vitrais na Igreja de Nossa Senhora de Fátima em Lisboa.

No ano de 1941 é organizada a exposição “ Almada – trinta anos de desenho” e é convidado pelo Secretariado Nacional  a participar na  6ª Exposição de Arte Moderna e na Exposição  “ Artistas portugueses” apresentada no Rio de Janeiro, atribuindo-lhe em 1942 o prémio Columbano.
De 1943 a 1948, a sua actividade criativa centra-se na realização dos fescos das Gares Marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos, vencendo o prémio Domingos Cerqueira.
Da década de 50 até à década de 70, quando morre, Almada desenha obras tão notáveis como os vitrais da Igreja do Santo Contestável, da Capela de S. Gabriel, e pinta o célebre retrato de Fernando Pessoa. Ou obras como os painéis para o bloco do edifício das Águas livres e fescos para a Escola Patrício Prazeres ( 1956), a decoração das fachadas da Cidade Universitária ( 1957),  o Hotel de Santa Luzia ( 1958) ou o Palácio de Justiça de Aveiro ( 1962).

Em 1969,  despede-se com duas obras – o painel do átrio da Fundação Calouste de Gulbenkian e os frescos na Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra. Duas das suas obras mais importantes, mostrando uma qualidade extraordinária que não decaiu com o passar dos anos.

Morre em 1970. José de Almada Negreiros, um Leonardo da Vinci português, artista de mil e uma artes, um  génio do século XX.

Rui Marques

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